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quarta-feira, março 27

Mudança

 Uma simples folha em branco, prestes a ser preenchida, com letras e palavras que a mente inventa e mente, tentando tornar real o pensamento de uma mudança mais profunda que os simples gestos de escrever para mudar a folha em branco.
 Talvez a vida seja apenas uma folha em branco pronta a ser escrita, já escrita com gatafunhos e rabiscos, com imagens coloridas, pintadas a mão por pessoas que nela passaram. Mudar, a folha em branco do dia de hoje, implicaria virar uma nova página, arranjar espaço para que esta mesma folha não se misture com as passadas nem se confunda com nenhum outro rabisco já rabiscado. Porém, ao dar lugar, ou espaço, a uma nova folha arriscamos a que as anteriores fiquem esquecidas no tempo, que não passem de memórias se alguma vez as formos lá ver, mas a mudança começa por aqui, por tentar colorir uma página, por tentar colocar na folha em branco meia dúzia de palavras que o pensamento vai tentando transmitir na ponta de uma caneta suspensa por uma mão firme e um coração trémulo.
 Qual o maior medo de uma mudança se não mesmo a própria mudança? Aquela que implica transferir pensamentos e sonhos para o real da vida, tentar não ter medo de arriscar o perder o pouco ou nada que se tem, mas que lá no fundo nos serve como suporte, mesmo que fugaz, para uma vida repleta de ilusões que nos bastam para que amanhã a mudança seja o seguimento do dia de hoje e não um dia diferente do de ontem.
 Mudança, palavra utilizada e banalizada para se dizer em qualquer situação, mas saber aplicar a mudança a uma vida repleta de vazio, onde apenas o sonho pode reinar em noites escuras e sombrias, seria uma tarefa penosamente dolorosa para ser vivida a sós.

quinta-feira, março 21

Da janela do meu quarto...

 consigo ver o mundo lá fora, penso que não seja muito diferente ou maior do que aquilo que vejo, resume-se a um parque de jardim, a um parque infantil e uma rua sem movimento.
 São raros os dias em que não me sente junto ao parapeito a olhar os movimentos banais e contínuos que as pessoas fazem lá fora, talvez a única coisa que mude seja mesmo a natureza, as flores, as folhas, as gotas de água que por vezes escorrem pelo vidro da janela. Ontem não me apeteceu vir para a janela, fiquei deitado na minha cama a olhar o tecto, a pensar no que se estaria a passar fora da janela, quase que como adivinhando o que o mundo faria, sem tentar não me enganar muito. Apeteceu-me ficar assim, deitado, fixando um ponto no tecto, ou vários que iriam mudando quando estivesse cansado de olhar para o mesmo sitio, foi um dia agradável, fiz a vontade ao corpo e deixei que ele descansasse da agitação do mundo. Hoje pode ser que me apeteça ir até a janela, os raios de sol já começam a entrar e a esbarrar no fundo da minha cama, talvez hoje me tente levantar e ver se o mundo ainda me reconhece, mesmo que nunca me tenha apresentado ou dar-me a conhecer aos olhares das pessoas.
 Novamente, em frente da janela, a embaciar o vidro, a fazer figurinhas que mais tarde irei apagar para poder ver as crianças que correm no parque, os velhos que se encostam numa bengala e conversam o mesmo de todos os dias, talvez passem por cá os habituais casais de namorados que ultimamente têm frequentado o jardim. Hoje os miúdos devem ter inventado um jogo novo, acho que nunca os vi a jogar isto e tão pouco percebo qual o objectivo, mas parecem divertir-se, pelo tom das gargalhadas e das conversas. Ainda tentei perceber qual a finalidade de atirar uma bola de ténis contra uma parede e tentar fugir dela depois, mas é algo que as crianças, estupidamente, fazem para se entreter, por isso não dará muito bem para entender.
 Ao longe vejo o corpo de uma pessoa estranha por cá, sim, vem sozinha, de mãos vazias, andar lento e olhar distante do mundo, parece querer encontrar algo mas que não tem tempo para procurar. Apoio-me nos cotovelos para tentar perceber quem é, mas de facto é uma pessoa estranha nesta zona, não será motivo de preocupação ou interesse futuro, mais uma viajante do espaço perdido. Caramba, é inevitável não reparar no seu cabelo longo e encaracolado, talvez seja louro, ou castanho muito claro, o sol embrenha-se nele e desfoca-lhe a cor, mas, contudo, fica-lhe bem, realça-lhe o rosto bonito. Tem o corpo um pouco esguio de mais, umas ancas um pouco exageradas, mas nada que não lhe fique bem, o andar sedutor de quem sabe que reparam nela, mesmo que caminhe sozinha no mundo, gosto do que vejo, talvez fique por cá mais um pouco, só até a perder de vista, quem sabe não seja, afinal, o único interesse que esta janela me dará hoje.
 O olhar dela prende-se, confuso, aos miúdos no parque, percorrem a paisagem de casas iguais, talvez nem veja o que lhe é mostrado, mas olha distraidamente. Tento esconder-me do seu olhar que se dirigiu para a minha janela, mas entre trapalhadas e escorregadelas dou comigo de joelhos a espreitar pelo canto da janela para ver se a encontro, e lá está ela, de olhar preso  na minha janela. Com tantos sítios para onde olhar tinha de focar o único local do mundo que tantos anos permaneceu imóvel e intocável. Que se vá embora o quanto antes!
 Passados cinco minutos já não a vejo, desapareceu por completo, talvez tenha sido melhor assim, posso voltar novamente a minha zona de conforto, ver quem corre no meio do nada e para lado algum, ouvir os lábios mudos dos velhos que criticam o tempo.
 A campainha de caso tocou, um silêncio profundo.
  Os meus pais não estarão em casa a esta hora? Quem será que chegou? Talvez eles se tenham esquecido da chave de casa... Talvez seja alguém a vender alguma coisa sem utilidade de alguma revista foleira... Talvez seja engano...
 Outro toque e o pequeno coração adormecido e alvoraçado estremece.
 E agora que faço, vou lá ver? deixo-me estar aqui, quieto e caldo, e talvez nem notem que está gente em casa? e se forem os meus pais? Sim, o mais certo é serem eles que se esqueceram da chave, e quanto mais me demorar mais eles me chateiam por não lhes ligar nenhuma.
 Num descer apressado pelas escadas, puxando as calças do fato-de-treino acima de vez em quando, lá conseguiu chegar a porta enquanto um irritante tocar de campainha mais prolongado se fazia ouvir pela casa toda. Abre a porta como que em desespero por fazer os pais esperarem tanto tempo e imaginando já o sermão que iria ouvir, quando da parte de fora da porta uma rapariga o olha de cima abaixo e lhe diz:
 - Olá.