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segunda-feira, novembro 12

Vida, a Bela Merda



 A porta fechou-se atrás dele com a força de uma tempestade invernosa, os degraus sobravam para as suas passadas apressadas, não fossem as folhas que o Outono trouxera ao chão a desviarem-se e poderia-se acreditar que alguém não passou ali.
 A rua fora feita a sua medida, deserta de sentimentos, repleta de pessoas numa correria sem destino algum, atarefadas com a sua vida olhando de lado para as vidas que se cruzavam no seu caminho, e ele cabisbaixo seguindo rua abaixo sabendo que passaria despercebido mesmo que na sua alma transporta-se o maior dos tesouros.
 Uma pedra branca, pequena e insignificante, parecendo estorvar-lhe o caminho é motivo suficiente para descarregar em si a sua fúria, o seu descontentamento, o seu vazio. Os seus pensamentos levam-no numa conversa que apenas ele conhece, num diálogo que mais parece um monólogo, onde é a personagem principal, o seu melhor conselheiro, o único que contradiz o que os pensamentos querem. Entre passadas desiguais, um chuto na pequena e insignificante pedra, as suas mãos apertam-se dentro dos bolsos dispostas a soltarem-se e esmurrarem a primeira árvore que aparecer, ou até mesmo o próximo parquímetro que não se desvie do seu caminho.
 A noite ameaça uma chuva quase eminente, os paralelos já molhados de uma chuva passageira parecem escorregar-lhe debaixo dos pés, mas nem isso o faz abrandar nos seus pensamentos ou nas suas passadas. Por entre ideias e revoltas, da mente, o seu olhar cruza-se com o sorriso de uma jovem que o avistou ao longe no seu encalço, o coração quase lhe gelou o sangue, por breves momentos sentiu o estômago encolher-se com um nó que lhe subiu até a garganta. Pela sua silhueta e o seu rosto parecia ela, o cabelo com o mesmo corte, a altura bastante semelhante, a postura firme e decidia seria a dela, mas o sorriso, não poderia pertencer a alguém que não lhe quer conhecer os gestos, a alguém que jamais olharia para ele com um sorriso e um gesto de felicidade. Rápido trocou as voltas a sua imagem, tentou visualizar essa rapariga que o estava a passar, a enfeitiçar e levar para outra pessoa que não desejaria mais encontrar. Como que vingança por essa tentativa da mente o iludir, dá um pontapé violento na pedra que o acompanhou desde casa até ao fundo da rua, de salto em salto acaba por cair numa sarjeta por entre um tilintar de desespero como que se agarrando com tudo o que podia e este passeio, a ponta do pé do seu dono. Ele pára em frente a sarjeta tentando descobrir o final de uma insignificante pedra, mas só lhe ocorre a ideia de que deitou fora, num gesto irreflectido, a única companhia que teve esta noite.
 Num amontoar de ideias, de imagens e desejos, que lhe percorrem a alma, recorda-se de querer a pedra pequena e branca de volta, de ter coragem de correr para a rapariga que lhe sorriu, de esquecer a rapariga que não lhe quer conhecer os passos e refazer a sua noite, mas o cansaço, a desilusão e o fim da história apenas o levam a pronunciar as palavras que a boca calou durante tanto tempo:
 Vida, a bela merda.