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quarta-feira, maio 1

Neste rio que te leva


 Ao longe, um som seco e abafado de uma arma disparada, ecoa por toda a rua, escurecendo ainda mais a noite fria sem luar, onde as pequenas gotas de orvalho se vão formando sobre um banco de jardim velho e gasto.
 No cais, um vulto caminha lento em direcção a margem, os seus sapatos reflectem a luz sombria dos candeeiros que lhes iluminam o caminho de tábuas molhadas e rasgadas pelo tempo. Em punho, segura uma arma que vai tentando limpar com o seu lenço de linho, cuidadosamente, retirado do seu fato preto. Abre a porta do carro, chave na ignição e o roncar de um motor adormecido ainda há instantes, no rádio passa uma sinfonia de Mozart, os bancos em cabedal branco ainda manchados de um momento de prazer forçado.

 O corpo, inanimado, cai na água fria de um rio sem nome, sem história, onde a corrente passa com a pressa de uma brisa moribunda e sem rumo. No peito leva uma bala cravada a quente, uma mancha de sangue que lhe vai escorrendo e misturando-se com a escuridão da água, cobrindo todo o resto do seu corpo em tons de vermelho escuro que a noite não quer revelar, que a noite esconde com a vergonha de ser cúmplice de uma morte fora de tempo. A blusa rasgada revela um peito pequeno sem soutien, as meias, que outrora foram finas e sensuais, escorregam-lhe pelos joelhos, as pernas, de uma palidez quase angelical, servem de leito a umas marcas mãos sedentes de si. Os cabelos loiros parecem saborear o frio da água, soltando-se, flutuando com o corpo que os prende, réstia de vida num corpo inanimado.

 Neste rio que te leva, uma prostituta termina o seu dia, segue em direcção ao pôr-do-sol que jamais virá, um homem abandona o objecto de prazer que o charme e o luxo lhe propusera. Neste rio que te leva, o fim não passa de uma noite que dará lugar ao amanhecer.