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quarta-feira, outubro 22

No fim de nós

 Longe vai o dia em que corríamos, desesperadamente, para longe daqui, onde pudéssemos ser nós, onde nada seria mais do que eu e tu, estivéssemos a sós que o tempo se encarregaria por si só de desaparecer para não mais nos parar.
 O luar está calmo, o céu escuro e carregado de saudade parece abraçar as almas que o tempo trás de amores perdidos e desencontrados. O corpo, que no seu colo carrega o corpo de alguém, sente o calor de uns braços trémulos fugindo peito abaixo. Um corpo, o meu, deixando o teu desistir de mim, abandonando o nós que aqui viveu.
 Frio que incendeia o corpo adormecido, em meus braços vejo o pedaço de ti que o tempo não levou. Rosto pálido, perfume sem odor e um sorriso que se perdeu num adeus que não se pronunciou. Impávido olho o teu cabelo, perfeitamente, desalinhado, uma ultima caricia, um ultimo toque nos teus lábios enrugados e frios. Secreto fica o desejo de te voltar a ter, de te dar vida em mim.
 Sem ti, abandono os corpos inexistentes naquele local escuro onde o vento não sopra, onde o luar ilumina os teus olhos sem brilho. Naquele mesmo local, enterro o que resta de nós, todas as memórias, todas as imagens que o tempo segurou em mim, desfaço os sonhos e os desejos, carrego a mente de pedras que pisei e arrastei, levo a metade que nunca viveu em nós.

terça-feira, outubro 21

Porquê eu?

 Foi sem querer ir que te levei nos sonhos que tinha de mim e de ti, sem pedir que te interrompi na tua vida de sossego, vasculhando cada sentimento adormecido, colhendo as flores da Primavera esquecida no teu coração.
 Foi por entre os dedos, que deixei um beijo levar-me aos teus lábios, onde percorri cada textura da tua boca e me perdi na doçura dos teus beijos. Cada traço do teu rosto acariciado pelo toque sedento de ti, do teu ser, da suavidade da tua pele, pelo carinho dos teus olhos.
 Foi sem jeito que ganhei coragem de te desejar só para mim, sem jeito de ser que te olhei e me vi feliz. E tu, no teu jeito de ser me perguntas, porquê eu?
 Foi por amor.

quinta-feira, setembro 25

Volta

 Tento reavivar a memória e luto para lembrar onde te deixei, onde ficamos, no porquê de termos deixado o tempo passar sem o acompanharmos. Questiono-me porque não corremos atrás um do outro, porque não te abracei uma ultima vez, mais forte que a ultima, mais intensa que a primeira.
 Hoje perdi os passos de uma caminhada segura, deixei que as pernas adormecessem ao som da tua imagem, vagueassem por entre sonhos e pensamentos, que haviam ficado guardados nas entranhas de um trilho difícil de percorrer.
 Desejo o teu regresso, sentir o que senti quando te vi pela primeira vez, segurar na tua mão junto ao meu peito, tocar os teus lábios e matar as saudades da tua pele.
...
Quero tanto que voltes, volta com a força de uma brisa matinal, traz-me de volta o tempo que não vivi ao teu lado, e, se preciso for, espera, espera que seja o tempo a retirar-nos um do outro. 

terça-feira, julho 15

Tudo sobre Nada

 A dúvida sobre o que é ou a quem pertence, a certeza do desconhecido que prende ao Nada quando nada está presente, talvez seja apenas eu, talvez seja de mim e de idiotas como eu.
 Quando Nada foi feito, nada haveria que fazer ou julgar o estar feito, apenas se diz que Nada foi feito enquanto tudo se arrasta para não haver mais Nada. Fácil, desmistificar a definição de Nada se fosse possivel associar cada definição pessoal a algo que nada vale. De opiniões, e certezas próprias, que nada contam, resume-se tanta coisa ao Nada que hoje se vive e se partilha.
 Quando não apetece fazer Nada, sentir Nada, desejar Nada, pressupomos que algo será exagerado para que seja feito, realizado, sonhado, mas no fundo estaremos a espera de algo que não caiba no mundo, de algo que Tudo seria insignificante ao lado do Nada que nos aparece.
 Como um carrossel vazio de Tudo e Nada, onde se luta por algo que não existe, se espera por algo que não vem e nos leva de volta ao início, passando pelo mundo vazio que nos acolhe sem Nada para nos dar e com Tudo que nos pode negar.
  Quis dizer Nada...

terça-feira, abril 22

Sombras na noite escura

 Mal vejo onde os pés assentam, mas sinto o teu respirar, consigo seguir na tua direcção, chegar a ti, tocar-te ao de leve. O teu rosto, imaginado em cada pormenor teu, feito por luzes que não existem e que as mãos descobrem, consigo ver-te, assim como as sombras que tu trazes contigo.
 Não fora a noite tão escura e o mar corresse, livremente, rio acima e poderia julgar que te tinha visto num outro local, numa outra vida outrora habitada por mim. Vinco os pés aqui, onde o tempo parou, onde o som do silêncio nos embala e nos leva noite fora, aprecio o teu jeito de ser, as tuas formas tão bem delimitadas na minha mente. Houvessem gestos que se pudessem fazer sem se sentir e o meu corpo seria teu eternamente, tão eterno fosse o sonho.
 Os braços que se enrolam em ti, que te prendem e te puxam, percorrem o teu corpo deixando a alma prisioneira deles mesmos. As mãos cegam-te o olhar e impedem-te de ouvir, de sentir, de tentar querer. Limitas-te numa prisão que não é tua, deixas a tua mente ser levada noite dentro, sem perguntar o porquê. Glorificas o momento que te parece tão cómodo, tão repleto de tudo.
 Ouço-te chamar o meu nome, e respondo-te do longe do teu corpo. Talvez o mundo não pare, ainda, talvez o rio siga o seu rumo normal em direcção ao mar, mas o teu corpo estremece, e as mãos que te prendem, que te seguem, são as mãos das sombras que a noite escura te trás. Eu, continuo olhando para ti, imaginando o teu rosto, o teu corpo, o teu jeito de ser, longe de ti, longe das sombras que não trouxe comigo.

quarta-feira, março 5

Incontornável melodia

 Já vivi mais do que o tempo pode viver. Outrora, desejei muito mais do que o que qualquer comum mortal poderia merecer. Invadi os sonhos de mim mesmo tentando viver, de uma só vez, tudo o que teria vivido se aqui não estivesse.
 Já te ouvi velho silêncio, nas ruas escuras de uma noite de amargura, fugi de ti como quem foge ao amor não desejado, virei a esquina por caminhos e ruelas onde te pude apunhalar de olhos fechados na esperança que me tivesse enganado no meu corpo. O turbilhão de ideias, desejos, preces a que prendi a minha mente, tentando matar qualquer réstia de existência que pudesse viver no meio de uma vida confusa, foi o meu ultimo refugio, a guarida que ansiei ser espinhosa de mais para que um corpo mortal pudesse suportar. Não fui quem serei um dia, e tão pouco quem agora desabafa por entre palavras, dolorosamente, arrancadas por uma mão que te matou velho silêncio!
 Tu, do meio do nada que me apareces e me mostras que uma vida vivida com tanto para contar, se resume apenas ao agora que não vivi. Morfina de uma morte anunciada ao som de sinos majestosos. Sepultura onde a minha mente descansava nos seus últimos momentos de lucidez descontrolada, e chegas tu para me arrancar das entranhas do meu mundo.
 Deveria agradecer-te por contrariares a rotação normal do meu mundo? Por me fazeres parar em frente a ti só porque sim? Não haverá vida em que te posso agradecer, não será por ser que tudo deixará de existir, mas será das tuas palavras em mim que o eco da minha voz percorrerá o teu mundo!
 Tu, que tão bem me fazes.

quinta-feira, fevereiro 13

O tempo do tempo

Ignóbil relógio! Preso no pulso apertando o coração com as tuas pontas soltas, hoje foste tu, apenas tu, a percorrer o tempo.

Solenemente frio

Longe de mim, algures, assassino a minha existência solenemente. Sufoco a alma com as lágrimas que não choro ou chorarei, quisessem elas existir no exterior de mim. De erros repetidos, angustias por sarar, mutilo o ser que em mim existe, mesmo antes de eu querer que existisse. No reverso de quem sou habita quem todos vêm , quem eu não consigo infligir dor, amável cobarde de mão impunes. Mas a alma, existência em mim, essa posso ferir, mutilar, assassinar a meu belo gosto e prazer como, como uma cerimónia solene , repleta de adornos de de malvadez. E abandono, sem qualquer ressentimento, essa parte que faz parte de mim. Deixo-a nas suas ultimas angustias de perdição, por querer voltar a habitar um corpo que lhe cometa erros, que a transporte através dos sonhos incapazes de viver.

terça-feira, janeiro 28

Perdendo o destino no caminho

 Não sei quantos km percorri até aqui, perdi a conta das pessoas que vi e vivi, das pedras do caminho esqueci a cor, bafejei a sorte que tantos outros tinham como azar, rodei no chão molhado ao som da chuva que me embalou num silêncio sufocante, troquei os passos a quem comigo tentou caminhar, enraizei-me no cheiro do teu perfume e fiz dele a minha bússola, perdi o teu olhar e hoje sigo com a certeza de que me estou a perder no meu caminho.
 Sem rumo a seguir, entrei numa viagem onde a nada me poderia levar, sem expectativas, sem certezas, fiz as malas e meti-me a caminho. Pelo simples prazer de caminhar, de observar, sim, penso ter sido esse o verdadeiro motivo e razão do meu partir, caminhar para longe sem esperar encontrar-me em lado algum. Cansar o corpo e a mente, conseguir deitar a cabeça sem ter algo em que pensar, apenas um dia que merecesse o descanso. Ser livre de mim e de todos, ver sem ser observado, embriagar-me nas pessoas que comigo se cruzariam.
 Não foi propositado ter pisado o mesmo chão que tu percorreras momentos antes, não foi planeado ver o teu olhar e o teu sorriso, talvez o teu perfume me tenha levado a seguir os teus passos. Como quem procura o que não quer ser encontrado, assim eu te segui, sem perguntar o porquê, sem questionar até quando, somente, deixei-me levar pela suavidade e beleza do teu ser, desejando percorrer os teus passos todos os dias, beber do teu olhar o mundo que neles transbordava. Aos poucos, fui perdendo a noção de onde estava, o que ali fazia, para onde seguia.
 Perdi o teu caminhar, sem perceber onde me deixaste ficar, segui uma viagem que não desejei, ouvi o som de um sorriso que me abandonou e me guiou, encontrei os sentimentos que tão bem tinha guardado na casa de onde parti. Hoje sigo com o peso de um coração que não quero ter, sem bússola ou destino, sem conhecer o chão que me leva. Na noite escura, o corpo cansado e a alma desgasta apenas conseguem encontrar conforto na ilusão que em ti criei.