Páginas

sexta-feira, dezembro 20

Como uma árvore

 Seguindo as margens de um rio, percorro o trilho que os nossos corações tantas vezes desejaram, revivo momentos que outrora foram as nossas ilusões.
 Deixei o destino levar os nossos sonhos para um lugar distante de nós, escrevi a nossa história numa árvore para que nunca fosse apagada, selei-a com um beijo suave de quem parte. Ao som do vento que essa árvore me trouxe, todos os dias, cresci e aprendi a amar, mudei a cada folha que foi caindo, parte de mim se ia apagando e rejuvenescendo.
 No leito do rio encontrei a imagem de ti, reflectida tantas vezes, tantas quanta a vontade que tinha de te ter ao meu lado nesse instante. Da sua água saboreei o encanto e ternura que a vida me fez chegar de ti, enregelei as minhas mãos tentado prender-te em mim.
 Hoje, olho a mesma árvore, passados quarenta anos, e revejo a nossa história, a profundidade das palavras que lhe escrevi, as mudanças que o tempo lhe causou. Olho-te nos olhos e com uma caricia no teu rosto, envelhecido, peço-te que continues a ser a minha árvore.

quinta-feira, novembro 28

Mendigo de sentimentos

mendigo de sentimentos
 Sem rua habitual onde morar, faz das suas memórias banco de jardim onde dormita e relembra o seu mundo maravilhoso que nunca teve, vive na esperança de uma vida melhor, onde não precise mendigar os sentimentos a que tem direito.
 Desde que tem memória, sempre viveu dando aos outros o melhor de si mesmo, sem pedir explicações, simplesmente, dava o que sentia, oferecia-o de mãos abertas vazias de explicações a receber. Talvez desse tanto quanto precisasse, mas nunca deu valor ao que precisava, satisfazia-o fazer alguém feliz, completava-o sentir que a sua vida seria pouco mais que uma gota no oceano, se esse oceano fosse a pessoa a quem os seus sentimentos se entregavam. Nunca soube dar menos do que o que lhe pediam, nunca soube deixar uma lágrima cair sem a sua presença, sem o seu sorriso, o seu carinho, o abraço apertado capaz de salvar um coração.
 Hoje encontrei-o na rua da solidão, mesmo ao fundo, sentado no seu banco de jardim, cabeça pousada nas mãos que o tentavam suportar para a vida, corcunda das mágoas que carregava as costas, olhar fixo numa pedra da calçada que lhe parecia diferente das outras. Passei por ele e tentei chegar a fala, mas quando o meu olhar se cruzou com o dele apenas vi os olhos de alguém que conheci e jamais conheço, sem o brilho que tantas vezes lhe vi, sem nada para dar, mas com tanto para receber.
 Hoje encontrei-me.

terça-feira, setembro 3

A certeza do incerto

 Hoje dei comigo, perdido, a divagar sobre as certezas da minha vida, de uma vida de certezas e incertezas.
 Tão relativo o conceito de certeza, não, não me refiro as certezas do físico, como o porquê de os rios correrem para o mar ou o azul do céu, mas sim a certeza que se gera dentro da mente guiada pelo coração. Todas as certezas serão mesmo certezas ou apenas um desejo de um sonho em que queremos acreditar como sendo essa a nossa certeza, pilar de um objectivo? Teremos nós capacidades para ter certezas quanto aos outros e a forma como tudo gira ao nosso redor ou será apenas fruto de uma ilusão imaginada e criada por nós que nos leva a ter certezas? Se temos uma certeza, seja ela qual for, porque não os outros poderem ter essa mesma certeza? Porque temos de ser apenas nós a ter certeza de algo que aos olhos dos outros parecerá banal?
 Por mais que tente encontrar respostas, chego sempre ao mesmo ponto de partida, serão as certezas assim tão claras aos nossos olhos e tão obscuras aos olhos dos outros? A duvida de uma certeza não é, por si só, motivo para desconfiar se será certeza ou incerteza?
 Uma pergunta atrás de outra, uma certeza desvanecida sempre que uma pergunta sobre si recai, a certeza de algo que não se pode ver, apenas sentir, será sempre certo e incerto ao olhar de cada um, dependendo dos olhos que vêem a certeza como algo em que acreditar ou algo banal em que desacreditar.
 A certeza incerta da vida é, talvez e sem grandes certezas, ter a certeza que nada mais importa senão a clareza e certeza de um olhar, de um sorriso, de um coração apaixonado que na nossa direcção encontra a certeza devolvida.

segunda-feira, agosto 26

Perdido

 Este silencio obscuro que me invade a mente, esta neblina sombria que me preenche o dia afastando de mim raios de sol, por mais pequenos que possam parecer, nesta imensidão vazia de mim, de ti.
percorri o mundo tentando encontrar-te, vasculhei montanhas e oceanos na esperança de ver ao longe a tua figura, o teu ser. Encontrei-te onde nunca procurei, junto a mim. Corri para ti como uma criança, abracei-te para nunca mais te deixar partir, fiz dos meus braços amarras onde te prendi sem nunca te tirar a liberdade, guardei o melhor de ti no meu coração, deixei o mundo conhecer quem eu era ao teu lado, quem eu era apaixonado por ti. Ofereci-te o meu sorriso para que nos maus momentos ele te pudesse fazer feliz, para que tivesses algo verdadeiro sempre que o vento te levasse para longe de mim.
 Hoje voltei a percorrer montanhas e oceanos na tentativa de encontrar alguém, na tentativa de ver a pessoa que perdi. Parei e olhei de frente, esperando ver onde não tinha procurado, mesmo ao meu lado, e não me encontrei, vi apenas o teu lugar vazio e o meu espaço em branco numa folha de papel.
 Fico com a certeza que os meus braços foram insuficientes para te segurar a mim, que um abraço de amor nada significa quando não o sentes. A criança em mim, seguiu para longe do tempo, perdida do mundo e sem o sorriso que um dia te ofereceu.
 Vagueando noite dentro, levo a alma envolta na lembrança do dia em que te encontrei ao meu lado, naquela sala de luz apagada enquanto os nossos corpos dançavam ao som de uma lareira.

quinta-feira, agosto 15

Longe da saudade

 Há um lugar, longínquo, onde a solidão banha a costa, em que os sentimentos se perdem e se encontram, vagueiam entre a penumbra da noite e a neblina que se instala, lentamente, sobre os corpos, um lugar de nome Saudade.
 Pode o corpo afastar-se, seguir rumo diferente da alma que nos alimenta, esquecer momentos em que apenas duas pessoas foram cúmplices, abandonar o incerto pelo certo do vazio seguro, mas jamais o sentimento acompanhará o corpo. Tantas vezes reprimido, afogado entre lágrimas silenciosas para não despertar o coração adormecido, ignorado na tentativa de não fazer sofrer, tardará o dia em que esse sentimento parta para longe, para a saudade que o acolhe de braços abertos, aconchegando-o no seu leito de amargura como se fosse a maior dádiva que lhe pudesse oferecer. Inocentemente, vive na saudade do seu passado, no sonho do futuro inexistente, esperançoso que um dia a sua fada se lembre dele e lhe possa recompensar pela ausência sofredora.
 Num lugar chamado Saudade, onde não existe ontem ou amanhã, vive-se no hoje que nos magoa, no som vazio que acompanha a alma, onde os pontos finais são trocados, repetidamente, por virgulas,  em que cada fim será um reinicio da mesma saudade.

"Aproveita que está perto e abraça. Faz agora, enquanto pode, porque a saudade meu bem, é um lugar incrivelmente longe." Marcelo Vico

quarta-feira, maio 1

Neste rio que te leva


 Ao longe, um som seco e abafado de uma arma disparada, ecoa por toda a rua, escurecendo ainda mais a noite fria sem luar, onde as pequenas gotas de orvalho se vão formando sobre um banco de jardim velho e gasto.
 No cais, um vulto caminha lento em direcção a margem, os seus sapatos reflectem a luz sombria dos candeeiros que lhes iluminam o caminho de tábuas molhadas e rasgadas pelo tempo. Em punho, segura uma arma que vai tentando limpar com o seu lenço de linho, cuidadosamente, retirado do seu fato preto. Abre a porta do carro, chave na ignição e o roncar de um motor adormecido ainda há instantes, no rádio passa uma sinfonia de Mozart, os bancos em cabedal branco ainda manchados de um momento de prazer forçado.

 O corpo, inanimado, cai na água fria de um rio sem nome, sem história, onde a corrente passa com a pressa de uma brisa moribunda e sem rumo. No peito leva uma bala cravada a quente, uma mancha de sangue que lhe vai escorrendo e misturando-se com a escuridão da água, cobrindo todo o resto do seu corpo em tons de vermelho escuro que a noite não quer revelar, que a noite esconde com a vergonha de ser cúmplice de uma morte fora de tempo. A blusa rasgada revela um peito pequeno sem soutien, as meias, que outrora foram finas e sensuais, escorregam-lhe pelos joelhos, as pernas, de uma palidez quase angelical, servem de leito a umas marcas mãos sedentes de si. Os cabelos loiros parecem saborear o frio da água, soltando-se, flutuando com o corpo que os prende, réstia de vida num corpo inanimado.

 Neste rio que te leva, uma prostituta termina o seu dia, segue em direcção ao pôr-do-sol que jamais virá, um homem abandona o objecto de prazer que o charme e o luxo lhe propusera. Neste rio que te leva, o fim não passa de uma noite que dará lugar ao amanhecer.

quarta-feira, março 27

Mudança

 Uma simples folha em branco, prestes a ser preenchida, com letras e palavras que a mente inventa e mente, tentando tornar real o pensamento de uma mudança mais profunda que os simples gestos de escrever para mudar a folha em branco.
 Talvez a vida seja apenas uma folha em branco pronta a ser escrita, já escrita com gatafunhos e rabiscos, com imagens coloridas, pintadas a mão por pessoas que nela passaram. Mudar, a folha em branco do dia de hoje, implicaria virar uma nova página, arranjar espaço para que esta mesma folha não se misture com as passadas nem se confunda com nenhum outro rabisco já rabiscado. Porém, ao dar lugar, ou espaço, a uma nova folha arriscamos a que as anteriores fiquem esquecidas no tempo, que não passem de memórias se alguma vez as formos lá ver, mas a mudança começa por aqui, por tentar colorir uma página, por tentar colocar na folha em branco meia dúzia de palavras que o pensamento vai tentando transmitir na ponta de uma caneta suspensa por uma mão firme e um coração trémulo.
 Qual o maior medo de uma mudança se não mesmo a própria mudança? Aquela que implica transferir pensamentos e sonhos para o real da vida, tentar não ter medo de arriscar o perder o pouco ou nada que se tem, mas que lá no fundo nos serve como suporte, mesmo que fugaz, para uma vida repleta de ilusões que nos bastam para que amanhã a mudança seja o seguimento do dia de hoje e não um dia diferente do de ontem.
 Mudança, palavra utilizada e banalizada para se dizer em qualquer situação, mas saber aplicar a mudança a uma vida repleta de vazio, onde apenas o sonho pode reinar em noites escuras e sombrias, seria uma tarefa penosamente dolorosa para ser vivida a sós.

quinta-feira, março 21

Da janela do meu quarto...

 consigo ver o mundo lá fora, penso que não seja muito diferente ou maior do que aquilo que vejo, resume-se a um parque de jardim, a um parque infantil e uma rua sem movimento.
 São raros os dias em que não me sente junto ao parapeito a olhar os movimentos banais e contínuos que as pessoas fazem lá fora, talvez a única coisa que mude seja mesmo a natureza, as flores, as folhas, as gotas de água que por vezes escorrem pelo vidro da janela. Ontem não me apeteceu vir para a janela, fiquei deitado na minha cama a olhar o tecto, a pensar no que se estaria a passar fora da janela, quase que como adivinhando o que o mundo faria, sem tentar não me enganar muito. Apeteceu-me ficar assim, deitado, fixando um ponto no tecto, ou vários que iriam mudando quando estivesse cansado de olhar para o mesmo sitio, foi um dia agradável, fiz a vontade ao corpo e deixei que ele descansasse da agitação do mundo. Hoje pode ser que me apeteça ir até a janela, os raios de sol já começam a entrar e a esbarrar no fundo da minha cama, talvez hoje me tente levantar e ver se o mundo ainda me reconhece, mesmo que nunca me tenha apresentado ou dar-me a conhecer aos olhares das pessoas.
 Novamente, em frente da janela, a embaciar o vidro, a fazer figurinhas que mais tarde irei apagar para poder ver as crianças que correm no parque, os velhos que se encostam numa bengala e conversam o mesmo de todos os dias, talvez passem por cá os habituais casais de namorados que ultimamente têm frequentado o jardim. Hoje os miúdos devem ter inventado um jogo novo, acho que nunca os vi a jogar isto e tão pouco percebo qual o objectivo, mas parecem divertir-se, pelo tom das gargalhadas e das conversas. Ainda tentei perceber qual a finalidade de atirar uma bola de ténis contra uma parede e tentar fugir dela depois, mas é algo que as crianças, estupidamente, fazem para se entreter, por isso não dará muito bem para entender.
 Ao longe vejo o corpo de uma pessoa estranha por cá, sim, vem sozinha, de mãos vazias, andar lento e olhar distante do mundo, parece querer encontrar algo mas que não tem tempo para procurar. Apoio-me nos cotovelos para tentar perceber quem é, mas de facto é uma pessoa estranha nesta zona, não será motivo de preocupação ou interesse futuro, mais uma viajante do espaço perdido. Caramba, é inevitável não reparar no seu cabelo longo e encaracolado, talvez seja louro, ou castanho muito claro, o sol embrenha-se nele e desfoca-lhe a cor, mas, contudo, fica-lhe bem, realça-lhe o rosto bonito. Tem o corpo um pouco esguio de mais, umas ancas um pouco exageradas, mas nada que não lhe fique bem, o andar sedutor de quem sabe que reparam nela, mesmo que caminhe sozinha no mundo, gosto do que vejo, talvez fique por cá mais um pouco, só até a perder de vista, quem sabe não seja, afinal, o único interesse que esta janela me dará hoje.
 O olhar dela prende-se, confuso, aos miúdos no parque, percorrem a paisagem de casas iguais, talvez nem veja o que lhe é mostrado, mas olha distraidamente. Tento esconder-me do seu olhar que se dirigiu para a minha janela, mas entre trapalhadas e escorregadelas dou comigo de joelhos a espreitar pelo canto da janela para ver se a encontro, e lá está ela, de olhar preso  na minha janela. Com tantos sítios para onde olhar tinha de focar o único local do mundo que tantos anos permaneceu imóvel e intocável. Que se vá embora o quanto antes!
 Passados cinco minutos já não a vejo, desapareceu por completo, talvez tenha sido melhor assim, posso voltar novamente a minha zona de conforto, ver quem corre no meio do nada e para lado algum, ouvir os lábios mudos dos velhos que criticam o tempo.
 A campainha de caso tocou, um silêncio profundo.
  Os meus pais não estarão em casa a esta hora? Quem será que chegou? Talvez eles se tenham esquecido da chave de casa... Talvez seja alguém a vender alguma coisa sem utilidade de alguma revista foleira... Talvez seja engano...
 Outro toque e o pequeno coração adormecido e alvoraçado estremece.
 E agora que faço, vou lá ver? deixo-me estar aqui, quieto e caldo, e talvez nem notem que está gente em casa? e se forem os meus pais? Sim, o mais certo é serem eles que se esqueceram da chave, e quanto mais me demorar mais eles me chateiam por não lhes ligar nenhuma.
 Num descer apressado pelas escadas, puxando as calças do fato-de-treino acima de vez em quando, lá conseguiu chegar a porta enquanto um irritante tocar de campainha mais prolongado se fazia ouvir pela casa toda. Abre a porta como que em desespero por fazer os pais esperarem tanto tempo e imaginando já o sermão que iria ouvir, quando da parte de fora da porta uma rapariga o olha de cima abaixo e lhe diz:
 - Olá.