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quinta-feira, março 21

Da janela do meu quarto...

 consigo ver o mundo lá fora, penso que não seja muito diferente ou maior do que aquilo que vejo, resume-se a um parque de jardim, a um parque infantil e uma rua sem movimento.
 São raros os dias em que não me sente junto ao parapeito a olhar os movimentos banais e contínuos que as pessoas fazem lá fora, talvez a única coisa que mude seja mesmo a natureza, as flores, as folhas, as gotas de água que por vezes escorrem pelo vidro da janela. Ontem não me apeteceu vir para a janela, fiquei deitado na minha cama a olhar o tecto, a pensar no que se estaria a passar fora da janela, quase que como adivinhando o que o mundo faria, sem tentar não me enganar muito. Apeteceu-me ficar assim, deitado, fixando um ponto no tecto, ou vários que iriam mudando quando estivesse cansado de olhar para o mesmo sitio, foi um dia agradável, fiz a vontade ao corpo e deixei que ele descansasse da agitação do mundo. Hoje pode ser que me apeteça ir até a janela, os raios de sol já começam a entrar e a esbarrar no fundo da minha cama, talvez hoje me tente levantar e ver se o mundo ainda me reconhece, mesmo que nunca me tenha apresentado ou dar-me a conhecer aos olhares das pessoas.
 Novamente, em frente da janela, a embaciar o vidro, a fazer figurinhas que mais tarde irei apagar para poder ver as crianças que correm no parque, os velhos que se encostam numa bengala e conversam o mesmo de todos os dias, talvez passem por cá os habituais casais de namorados que ultimamente têm frequentado o jardim. Hoje os miúdos devem ter inventado um jogo novo, acho que nunca os vi a jogar isto e tão pouco percebo qual o objectivo, mas parecem divertir-se, pelo tom das gargalhadas e das conversas. Ainda tentei perceber qual a finalidade de atirar uma bola de ténis contra uma parede e tentar fugir dela depois, mas é algo que as crianças, estupidamente, fazem para se entreter, por isso não dará muito bem para entender.
 Ao longe vejo o corpo de uma pessoa estranha por cá, sim, vem sozinha, de mãos vazias, andar lento e olhar distante do mundo, parece querer encontrar algo mas que não tem tempo para procurar. Apoio-me nos cotovelos para tentar perceber quem é, mas de facto é uma pessoa estranha nesta zona, não será motivo de preocupação ou interesse futuro, mais uma viajante do espaço perdido. Caramba, é inevitável não reparar no seu cabelo longo e encaracolado, talvez seja louro, ou castanho muito claro, o sol embrenha-se nele e desfoca-lhe a cor, mas, contudo, fica-lhe bem, realça-lhe o rosto bonito. Tem o corpo um pouco esguio de mais, umas ancas um pouco exageradas, mas nada que não lhe fique bem, o andar sedutor de quem sabe que reparam nela, mesmo que caminhe sozinha no mundo, gosto do que vejo, talvez fique por cá mais um pouco, só até a perder de vista, quem sabe não seja, afinal, o único interesse que esta janela me dará hoje.
 O olhar dela prende-se, confuso, aos miúdos no parque, percorrem a paisagem de casas iguais, talvez nem veja o que lhe é mostrado, mas olha distraidamente. Tento esconder-me do seu olhar que se dirigiu para a minha janela, mas entre trapalhadas e escorregadelas dou comigo de joelhos a espreitar pelo canto da janela para ver se a encontro, e lá está ela, de olhar preso  na minha janela. Com tantos sítios para onde olhar tinha de focar o único local do mundo que tantos anos permaneceu imóvel e intocável. Que se vá embora o quanto antes!
 Passados cinco minutos já não a vejo, desapareceu por completo, talvez tenha sido melhor assim, posso voltar novamente a minha zona de conforto, ver quem corre no meio do nada e para lado algum, ouvir os lábios mudos dos velhos que criticam o tempo.
 A campainha de caso tocou, um silêncio profundo.
  Os meus pais não estarão em casa a esta hora? Quem será que chegou? Talvez eles se tenham esquecido da chave de casa... Talvez seja alguém a vender alguma coisa sem utilidade de alguma revista foleira... Talvez seja engano...
 Outro toque e o pequeno coração adormecido e alvoraçado estremece.
 E agora que faço, vou lá ver? deixo-me estar aqui, quieto e caldo, e talvez nem notem que está gente em casa? e se forem os meus pais? Sim, o mais certo é serem eles que se esqueceram da chave, e quanto mais me demorar mais eles me chateiam por não lhes ligar nenhuma.
 Num descer apressado pelas escadas, puxando as calças do fato-de-treino acima de vez em quando, lá conseguiu chegar a porta enquanto um irritante tocar de campainha mais prolongado se fazia ouvir pela casa toda. Abre a porta como que em desespero por fazer os pais esperarem tanto tempo e imaginando já o sermão que iria ouvir, quando da parte de fora da porta uma rapariga o olha de cima abaixo e lhe diz:
 - Olá.

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