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segunda-feira, março 14

Recordações pequeninas 4

 Férias da escola primária, tardes de verão abrasadoras, miúdos prontos para brincar, se fosse com água melhor ainda, e mães dispostas a pôr os filhos a dormir... ok, algo não se enquadra aqui. Dormir numa tarde de verão???
 Pois é, sofri muito com as sestas da minha mãe, que eu era obrigado a presenciar, de corpo e alma. Bem, de corpo apenas, pois a minha alma andava na rua a brincar com os outros miúdos. Deitado naquela cama, em tronco nu, de calções, o escuro do quarto e o som da ventoinha a girar de um lado pro outro, ambiente perfeito! O que eu não daria para poder andar a correr na rua, a transpirar por cada poro do meu corpo, a ficar com tonturas por causa do sol.
 Insistentemente, depois do almoço, a minha mãe proferia a minha sentença de morte, " vamos dormir a sesta! ". De pouco adiantavam as minha lágrimas, os meus berros e o ranho a escorrer pelo nariz abaixo chegando mesmo, por vezes, a roçar no lábio. Aquelas palavras seriam a lei dessa tarde, desse verão. Deitar as 2h levantar as 5h. Meu Deus, como eram longas essas horas, pareciam uma eternidade.
 Felizmente, para mim, não me encontrava sozinho naquela situação, a minha irmã dormia no quarto ao lado e o meu primo em casa dele, acredito que isto tenha sido mal de família. Eu, como mais pequenino e mais reguila, tinha de dormir com a minha mãe, para ela me poder controlar mesmo! Já a minha irmã encarava toda esta situação com um sorriso nos lábios, pois para ela a sesta durava pouco mais de cinco minutos, o tempo suficiente para a minha mãe me levar pro quarto e fechar a porta. O som da porta a fechar era o preferido da minha irmã, pois sabia que podia ir pra rua brincar sem ninguém dar conta. O meu primo partilhava da mesma sorte que ela, e era vê-los felizes e contentes a brincar, enquanto eu permanecia naquela masmorra de ventoinha ligada...
 Isto não poderia continuar assim, dois meses naquele sofrimento era tempo suficiente para eu dar em doido! Por isso, numa bela manhã,combinei com os suspeitos do costume que a nessa tarde não ficaria mais que meia-hora na cama da sesta! Era a minha palavra de Homem a falar, a minha mente de miúdo a funcionar e as consequências por medir!
 2h em ponto, as palavras de ordem " Cama, vamos dormir a sesta!", e eu ali firme, nem uma lágrima, nem um berro, nada! Muito obediente lá fui pra cama. Fechar a persiana, ligar a ventoinha, confirmar se a minha irmã estava no quarto, fechar a porto do quarto e estava a tarde programada pela minha mãe!
 Pé ente pé, muito devagarinho, consegui chegar a maçaneta da porta, agora vinha a parte difícil, teria de por em pratica todo o meu talento para a abrir sem fazer barulho. Não sei se foi do momento de medo e ansiedade que estava a viver, mas parece que demorei uma vida para abrir aquele maldita porta, que me separava da liberdade cá fora.
 Quando cheguei cá fora, junto aos meus cúmplices, as bocas abertas diziam tudo, eu era finalmente o herói que merecia ser! Consegui fugir, sem deixar rasto! Senti-me capaz de tudo naquele momento, até mesmo da maior loucura! Ao que parece, a minha irmã tinha o dom de ler a mente, e com um sorriso de orelha a orelha diz " vamos pro tanque da quinta! ". Claro que para mim isso era canja, para quem foge da prisão, ir para um tanque enorme, cheio de água fresquinha, com sombra e o som do ribeiro que passava perto como banda sonora, seria ouro sobre azul!
 Ainda hoje guardo esta imagem, água limpinha, um tanque todo em pedra que se podia ver o fundo, árvores a volta, sombrinha, o som do ribeiro, as saudades que eu tenho... os meus olhos pequeninos
encheram-se de água, tal foi o comoção de poder ser livre e ir para aquele paraíso!
 Foi uma tarde inesquecível, as brincadeiras, os saltos da borda do tanque... se a perfeição tivesse momento, seria aquele!
 5h em ponto, era suposto eu estar deitadinho na cama, ao lado da minha mãe, mas desta vez foi ela que me foi fazer companhia. De chinelo na mão, com uma cara que me meteu muito muito medo, a gritar comigo, algo que não percebi. As lágrimas, os berros, o ranho pelo nariz abaixo, desta vez a roçar mesmo os lábios, eu encostado ao canto do tanque onde a minha mãe não pudesse chegar...
 Fim de tarde trágico...

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